Tive que reproduzir este trecho de O poder do mito, de Joseph Campbell - uma entrevista. Fiquei emocionada com a descrição sobre o livro do Mann, talvez porque me identifiquei muito com o que o personagem viveu, porque admiro aquele que foi para longe e conseguiu dar a totais desconhecidos mais do que àqueles que são sua gênese, sua história, sua memória... mas tb não os invejo.
MOYERS: Quer dizer que contamos histórias para tentar entrar em acordo com o mundo,
para harmonizar nossas vidas com a realidade?
CAMPBELL: Penso que sim. Romances – grandes romances – podem ser
excepcionalmente instrutivos. Nos meus vinte e nos meus trinta, até nos meus quarenta
anos, James Joyce e Thomas Mann eram meus professores. Eu lia tudo o que eles
escreveram. Ambos escreveram em termos do que se poderia chamar de tradição
mitológica. Tome, por e xemplo, a história de Tonio, no Tonio Kröger, de Thomas Mann. O pai de Tonio era um sólido homem de negócios, um cidadão de relevo em sua cidade natal. O pequeno Tonio, porém, tinha um temperamento artístico, por isso mudou se para Munique e reuniu se a um grupo de literatos, que se sentiam superiores aos meros ganhadores de dinheiro e aos homens de família.
Assim, eis aí Tonio dividido entre dois pólos: seu pai, que era um bom pai, responsável e tudo o mais, mas que nunca tinha feito o que queria, em toda a sua vida; e, por outro lado, aquele que deixa sua cidade natal e assume uma atitude crítica em relação à vida que se levava lá. Mas Tonio descobriu que de fato amava a gente de sua cidadezinha. E embora se julgasse um pouco superior a eles, em termos intelectuais, e pudesse falar deles com
palavras cortantes, seu coração, apesar de tudo, estava com eles.
Mas quando partiu, para viver com os boêmios, descobriu que estes tinham tal desdém pela vida que tampouco poderia viver com eles. Por isso deixou os e e screveu uma carta a um do grupo, dizendo: “Admiro aqueles seres frios e orgulhosos que se arriscam nos caminhos da beleza elevada e diabólica e menosprezam a ‘humanidade’; mas não os invejo. Pois se alguma coisa é capaz de fazer de um literato um poeta, essa coisa é o amor de minha cidade natal pelo humano, aquilo que existe e é comum. Todo calor deriva desse amor, toda doçura e todo humor. De fato, quanto a mim, creio mesmo que esse amor deve ser aquele sobre o qual está escrito que se pode ‘falar com a língua dos homens e dos anjos’, que no entanto soa, quando o amor falta, ‘como metal ruidoso ou címbalo tilintante’”. Em seguida, ele diz que “o escritor deve ser verdadeiro para com a verdade”. E ele é um assassino, porque a única maneira de você descrever verdadeiramente um ser humano é através de suas imperfeições. O ser humano perfeito é desinteressante – o Buda que abandona o mundo, você sabe. As imperfeições da vida é que são apreciáveis. E, quando lança o dardo de sua palavra verdadeira, o escritor fere. Mas o faz com amor. É o que Mann chamava “ironia erótica”, o amor por aquilo que você está matando com sua palavra cruel, analítica.