Quando ouvimos falar em hipocrisia (denominação para fingimento ou falsidade), logo nos vêm à mente figuras que disseminam uma filosofia de vida, mas na prática, os princípios são outros. Isso não deixa de ser verdade, o hipócrita é o típico “Faça o que eu mando, não faça o que eu faço”. Mas, no geral, como existe esta incoerência entre o que o hipócrita diz e o que ele faz, nossa tendência é não confiar em suas palavras ou mesmo nem dar ouvidos a elas, deslegitimando qualquer discurso que venha dele.
Recentemente, a revista Scientific American MIND publicou a matéria The Truth about Hypocrisy (A verdade sobre a hipocrisia), em que o Ph.D. em Filosofia, pela Universidade Vanderbilt, Aikin F. Scott e o professor de filosofia e ciência política da mesma universidade, Robert B. Talisse. Os dois autores argumentam, no decorrer do texto, que embora a hipocrisia seja importante para que as pessoas possam avaliar se um indivíduo, geralmente uma autoridade, tem credibilidade ou não para falar sobre um assunto, é importante analisar quais são os argumentos do suposto hipócrita antes de evitar dar atenção ao seu discurso.
Os autores apresentam alguns exemplos, cada qual dando um valor ao comportamento hipócrita. Em um deles, o pai (fumante) diz ao filho para não fumar. Os autores reforçam que o pai, por ser fumante, aparentemente não teria credibilidade para dar tal conselho ao filho, mas, por outro lado, por ser o fumo provocado pelo vício, o pai seria a figura com maior autoridade e credibilidade para argumentar contra o este comportamento do filho, porque tem experiência suficiente para comprovar que os resultados de fumar são negativos, embora não consiga convencer a si mesmo, porque a mudança dependeria de mais do que bons argumentos racionais, mas de tratamento de ordem fisiológica.
O fato do pai fumar e recomendar que o filho não fume, ao mesmo tempo, não elimina o fato de que o cigarro faz mal à saúde e provoca um vício. Quando o filho nega escutar o argumento do pai, é como se usasse sua ‘hipocrisia’ como fuga da realidade de que ele se tornará um viciado e causará problemas à saúde.
A hipocrisia pode ser assim, de acordo com os autores da matéria, um meio de deslegitimar uma autoridade e se concentrar na ausência de credibilidade do outro, invés de ouvir seus argumentos e opinar sobre sua importância.
A mudança de hábitos é uma das coisas mais difíceis a se fazer, principalmente depois de uma certa idade. Por isso, a acusação de hipocrisia pode ser apenas uma desculpa para tirar o valor de uma informação ou de um discurso, ou mesmo para tirar a autoridade e credibilidade de uma fonte de informação.
No caso da questão ambiental, muitos pregam a necessidade de mudança de comportamento, mas quantas destas pessoas ainda continuam usando veículos movidos a derivados de petróleo, jogando lixo reciclável junto com o orgânico, tomando banhos de quase uma hora etc. É preciso desvincular a atitude de quem fala, da informação que ela fornece, para avaliar o valor do discurso.
Em outros casos, a acusação de hipocrisia se confirma e descredibiliza a informação que foi dada, porque a ação do indivíduo realmente contradiz a informação que ele dá.
Não bastar mandar fazer é preciso fazer para mandar
Isso nos leva a pensar na importância do modelo/referência no processo de aprendizado, como já citei em texto anterior deste blog. Não basta que as autoridades de uma cultura criem campanhas e discursos sobre os cuidados com a saúde, a higiene, a separação do lixo, o uso racional da água etc. É preciso que estas autoridades sejam o modelo destas atitudes.
Um pai que fuma e fica viciado, e desenvolve doenças relacionadas ao fumo, é um modelo de que o cigarro vicia e faz mal à saúde, mas se este pai não assume para o filho o quanto se sente mal com o fato de não conseguir largar o vício e em ter adquirido doenças, e fuma por todo lado sempre feliz e satisfeito, a idéia que isso dará ao filho é de que fumar não tem nada de mais, ao contrário, de que dá prazer.
Isso ocorre por que uma das formas de aprender um comportamento é a observação e imitação, como descreve Eduardo O. C. Chaves, Modelos de Aprendizagem.
[...] quando observamos a ação de outros seres humanos, mesmo que eles não saibam que os estamos observando, e refletimos sobre essa ação, procurando descobrir o que os leva a agir desta ou daquela forma, quais são as convicções e os valores que aquele comportamento exemplifica etc., com o intuito de tirar lições para a nossa própria vida; [...]
É importante dizer que em alguns casos, o indivíduo observa o outro, vê coerência entre seus valores e suas ações, mas não o imita, porque sua “teoria adotada” não está de acordo com sua “teoria praticada”. Estes dois termos entre aspas citados anteriormente foram usados por Argyris e Schön (1978)* para definir os dois tipos de “teorias da ação”. Estes dois estudiosos explicam que o indivíduo tem ‘mapas mentais’ que guiam seu comportamento diário (“teoria praticada”), mas que este guia não é necessariamente similar à “teoria adotada”, ou seja, o que o indivíduo usa para justificar seus comportamentos.
Por um lado, a hipocrisia reforça o valor da informação que o indivíduo hipócrita dá mas não segue, podendo constituir-se um modelo para a ação do outro e, por outro lado, ela transparece a falta de credibilidade da informação fornecida e tira a autoridade daquele que a proclamou.
Hipocrisia para a sustentabilidade
Muitos podem dizer que as empresas voltadas para uma atuação mais responsável e preocupadas com a sustentabilidade são hipócritas. Em realidade, não podemos generalizar e dizer que todas o são ou que todas não o são. O que podemos garantir é que existem diferentes posturas.
E muitas empresas estão tomando medidas realistas e viáveis em um sistema em que muitos, que denominam o investimento em sustentabilidade um comportamento hipócrita e que o objetivo das empresas é apenas lucrar, esquecem que as empresas atendem, hoje, inúmeros desejos e necessidades que os mantém no conforto da vida contemporânea. Além disso, o interesse comercial das empresas estimula a mudança de comportamento de diversos grupos sociais – seus funcionários, clientes, fornecedores, a comunidade.
É necessário sermos justos ao julgar a atitude de pessoas e empresas quando o tema é sustentabilidade, afinal a tentativa máxima é evitar que se tenha que destruir tudo para reconstruirmos um mundo sustentável. Não se sabe se será suficiente o que se planeja fazer hoje, mas é preciso que cada um julgue-se antes de proclamar a hipocrisia do outro.
E para os que são hipócritas, utilizando-se da onda de sustentabilidade para agregar valor ao seu produto ou serviço, viva a hipocrisia, a hipocrisia para uma possível sustentabilidade.
*ARGYRIS, C. SCHÖN, D. Organizacional Learning: a theory of action perspective. Reading. MA: Addison-Wesley, 1978.
Fontes:
- The Truth about Hypocrisy (A verdade sobre a hipocrisia), do Ph.D. em Filosofia, pela Universidade Vanderbilt, Aikin F. Scott, e o professor de filosofia e ciência política da mesma universidade, Robert B. Talisse; Scientific American MIND. Volume 9. Número 6.
- Organizações em Aprendicagem, de Isabella F. Gouveia de Vasconcelos e André Ofenhejm Mascarenhas, THOMSOM Learning, 2007.
- Modelos de Aprendizagem, de Eduardo O. C. Chaves.
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