domingo, 13 de setembro de 2009

A máquina


A máquina trabalhava todos os dias da semana, expediente de mais de 8 horas diárias, número não contabilizado na CLT. Mas, afinal, era só uma máquina. Embora, no fim das contas, parecesse mais um confessionário em que o crédulo “lava seus pecados”.

Bom, mas este não é o início da história. Tudo começa numa neurose. E o que começa em neurose nunca termina, por isso, esta história a exemplo do livro de Michael Ende, é uma história sem fim.

Mas, esta neorose também não pode existir sem o neorótico, então vamos lá.

O Sr. Avelino acordava, todos os dias, às 6h em ponto, nem um minuto a mais nem a menos. Este era o horário que seu despertador costumava tocas durante 30 anos de sua vida, período em que trabalhava pela manhã.

Embora seu expediente só começasse às 13h, de uns 10 anos para cá, ele continuou com um despertador biológico que não o deixava passar das 6h ainda que tomasse o remédio para dormir.

Então, diariamente, pulava da cama como gato posto pra correr e, depois da primeira parada no banheiro, p fogão e a máquina estavam a sua espera.

Água posta pra ferver, seguia até a lavanderia. Tão logo chegava, já iniciava a programação da máquina: roupa do cesto no tambor e aquele som de água enchendo, tranqüilizava-o e a deixava trabalhar.

A família toda dormindo por pelo menos mais uma hora e ele pronto para ir aonde quer que fosse necessário, ou claro, ficar ao lado da máquina só observando e sentindo sua vibração enquanto o sabão e a água se misturavam aos tecidos, provocando uma catarse de limpeza em nosso espectador.

E a máquina era sempre assunto, ainda que se falasse de grampos de cabelo, de dinheiro (mais especificamente moedas), de pêlos, ou da empregada.

Máquina era até motivo de nostalgia ou de discussões daquelas triviais entre família. E o sr. Avelino não entendia de roupa, de tipos de tecido ou de moda. Ele só sabia que todas as vezes que uma blusa preta ficava cheia de bolinhas brancas ou encolhia era culpa de sua esposa ou da empregada.

Aquele era um objeto sagrado capaz de afastar as pessoas em momentos oportunos, de lavar tudo o que se dizia ou fazia e que provocasse arrependimento ou mesmo apenas para fazer barulho o suficiente que não permitiria ouvir seus próprios pensamentos e fazer esquecer o que pudesse ter causado dor ou mal estar a alguém.

Fazia chuva ou sol, frio ou calor, dia ou noite, carnaval ou finados, e ela não parava. Bem, isso até surgir um barulho novo. E, sr. Avelino sabia identificar todo novo barulho tanto era o tempo que ficava a seu lado. Preferia lavar roupa e comer pão com carne amanhecida a pagar jantar para a família. Preferia abrir inúmeras vezes a tampa da máquina para inspecionar seu funcionamento a saber o que fazia seu coração bater mais forte e mais feliz.

Mas, não sejamos cruéis, talvez fosse a certeza de que tudo poderia ser limpo que lhe dava forças e alegria para seguir adiante. Talvez aquela vibração fizesse seu coração bater com mais intensidade.

A tecnologia não o surpreendia de fato. Sal avaliação minuciosa do funcionamento das coisas o fazia entusiasmado com uma combinação simples de pilhas e arame ou... água e sabão.

Então, um dia, a máquina começou a emitir um barulho estranho. E, embora sr. Avelino já houvesse executado muitos ruídos da máquina, este era assuntador, agudo como a trilha sonora de Psicose, de Hitchcock.

Chacoalhou de todas as formas. Passou semanas testando tecidos, volume de água, de roupas etc. Queria evitar ao máximo pagar um técnico: “Com certeza é algo simples e vão me cobrar o olho da cara”, dizia à mulher, com ares de papai da família urso – da Turma do Pica-Pau.

Continuou os testes, até que um dia, cansado de experimentar e continuar ouvindo o choro de sua companheira, chamou um profissional especializado e descobriu que o barulho nada mais era do que um suporte para evitar que gatos se alojem em seu interior. Foi uma descoberta totalmente inusitada e sr. Avelino contou esta história por anos a fio, a todos aqueles com quem conversava... no banco, na praça, no médico, no elevador, na rua...

(Aline Daher)

Foto: http://www.maurolemes.com.br/image014.gif

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