Existe uma confusão acerca do conceito de ‘cultura’ dentro do que chamamos de senso comum. Isso significa que a maioria das pessoas, independente de classe social ou nível educacional, pensam e disseminam um conceito distorcido desse termo.
Então vamos ao esclarecimento:
Cultura é, além de definir a ação de cultivar a terra, o conjunto de conhecimentos e ações, hábitos, comportamentos, ferramentas, tecnologias, políticas, regras, moral, ética etc. que determinam a forma de viver de um grupo social e determinam seu senso comum. No entanto, esse conceito também se aplica a um universo particular de conhecimento, que sob o domínio de um indivíduo o qualifica para avaliar determinadas situações e conteúdos, estimulando seu senso crítico.
Acredito que seja a partir dessas variações do conceito que surge a confusão. Isso porque muitos reproduzem a seguinte frase: “Essa pessoa não tem cultura.” Este tipo de afirmação não é possível, a não ser que ‘a pessoa’ a que o interlocutor esteja se referindo não tenha sido criado dentro de um grupo social, ou seja um tipo de “Mogli – menino lobo”.
Todo ser humano, inserido num grupo de pessoas e vivendo junto com ele, tem cultura. Pode ser a cultura do lixão, ou seja, de viver – dia após dia – buscando restos nos lixões. Esse é o hábito dele. É sua forma de viver. Isso o aproxima de algumas pessoas e o distancia de outras. Define o que ele come, o que ele pensa e sente, como ele se comporta. Talvez não seja uma cultura estabelecida institucionalmente, oficial, mas é uma maneira de cultivar hábitos.
E esta cultura dos lixões, dessa forma, como todas as outras, perpetua-se. Por meio de experiências e histórias que constituem sua tradição cultural, a qual estabelece suas autoridades e hierarquia. Os mais antigos contam suas histórias e agregam seguidores que acreditam ser a sua forma de viver um modelo, em alguns casos, a única alternativa de vida que consideram viável.
E o que são essas histórias senão ‘mitos’. Narrativas simbólicas que representam o sucesso ou insucesso de personagens-tipo da cultura em que estão inseridos. Se na sociedade industrial, os nossos heróis são os executivos bem sucedidos, modelos e jogadores de futebol, nos lixões temos a figura de “Estamira”, por exemplo – personagem central do filme com o mesmo nome.
É o mito, que ganhou espaço na literatura e, mais tardiamente, no cinema, que continua ensinando nossa cultura, como devemos viver, agir, pensar, nos relacionar, trabalhar, amar etc. Mas as histórias se multiplicaram e se diversificaram de acordo com as ferramentas e circunstâncias. Tornaram-se divulgadas em massa, graças ao desenvolvimento da tecnologia da comunicação e da informação.
E, embora o mito pareça algo do passado remoto, ele está presente diariamente em nossas vidas, cada vez que alguém conta uma história e associa seu comportamento ao sucesso e ao amor ou à derrota e à dor. O mito nos dá modelos mentais para que possamos saber como pensar, como agir. Seja ele contado de boca-a-ouvido ou transmitido via TV, Internet, rádio, jornal ou revista.
E são as histórias que se conta entre os indivíduos de um mesmo grupo social ou via meios de comunicação que dão os alicerces de uma cultura. Muito mais do que as regras oficiais, os modelos estimulam ou desestimulam nossas ações. Isso demonstra que aquilo que lemos, ouvimos, estudamos, com o que trabalhamos, assistimos etc. de maneira informal (e na maioria das vezes com vínculo emocional e afetivo), influencia mais nosso comportamento e forma de vida (nossa cultura) do que a racionalidade de uma lei oficial, de algo registrado formalmente como código a seguir.
Novamente, uma cultura é mais do que a formação ou educação cognitiva – modelo comum hoje nas escolas de quase todo o mundo –, é mais do que um conjunto de regras e leis racionais que recompensam ou punem. É uma rede de histórias, de mitos, de modelos, de símbolos, de pessoas que nos influenciam o tempo todo neste ou naquele caminho e nos permitem desenvolver nossas habilidades cada vez mais ou nos aprisionam a um ciclo vicioso, aparentemente sem saída.
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